Variação do Comportamento E Personalidade: Como a Análise do Comportamento Interpreta?


João Vicente de Sousa Marçal

No seu processo histórico e evolutivo, o ser humano sempre questionou a sua própria existência (Roberts, 2001). Saber, por exemplo, qual é a sua natureza, sua origem, razão de ser, do que é feito, o que determina suas ações, qual é o seu papel no mundo, etc, são questionamentos que sempre estiveram presentes na história do pensamento de diversas culturas (Russell, 2001) e muitas são as explicações já apresentadas. Filósofos e, em especial, os estudiosos do comportamento (alguns prefeririam dizer da mente) apresentaram um interesse especial em saber o porquê fazemos o que fazemos. Conseqüentemente, diversos sistemas conceituais, sob variadas influências, foram desenvolvidos para explicar o fenômeno da ação humana. Muitos
destes sistemas vieram a compor o que no século XX ficou conhecido como as teorias da personalidade (Fadiman e Frager, 1986). Estes modelos teóricos preocuparam-se em descrever os elementos que constituem a personalidade e a maneira pela qual são adquiridos, mantidos ou modificados.

A palavra personalidade vem do latim personalis, o mesmo que pessoal, e é definida em dicionário como o “conjunto dos elementos psíquicos e comportamentais que constituem a singularidade de um sujeito”. O uso deste termo está inserido na linguagem cotidiana. Frases como “é da minha personalidade agir assim”, “não tem personalidade” ou “João tem uma personalidade forte” são freqüentemente proferidas. Muitas vezes o seu uso se refere a algo que está dentro da pessoa, que é inerente a ela e que determina o que irá fazer em uma situação específica. Essa noção, por sua vez, associa-se a adjetivos, referentes a entidades internas, que justificam alguns comportamentos, como nos seguintes exemplos: “Lucas nada fez porque é tímido” ou “Maria apresentou aquela atitude por ser egoísta e só pensar nela”.

Esta caracterização da personalidade ou do eu, presente no uso diário, comumente leva a uma série de questionamentos e dúvidas, fazendo com que as pessoas, às vezes angustiadas, procurem saber se existe um eu verdadeiro e, em caso afirmativo, como descobri-lo. Procuram saber também quando estão sendo "elas
mesmas", se é possível mudar o modo de agir sem mudar a personalidade e saber o que faz alguém ser do jeito que é. Há consenso sobre a complexidade do ser humano e de suas características variadas, no entanto, isto não esclarece muitas incertezas que o homem tem sobre si mesmo. Em decorrência, observa-se uma busca constante por autoconhecimento e um número cada vez maior de pessoas interessadas em serviços profissionais, em especial o psicológico, que possam auxiliá-las nesta tarefa.

Interpretações desta natureza foram criticadas pelo filósofo Gilbert Ryle (1949), que aponta para um erro lógico nas mesmas. Segundo Ryle, tímido e egoísta são apenas um rótulo para uma categoria de comportamentos apresentados em um dado contexto e não a causa destes. Esta análise também se aplica ao uso do termo personalidade como causador das ações humanas, já que o mesmo, igualmente, rotula classes de comportamento. Outros conceitos como índole, caráter ou natureza do indivíduo, características que compõem o ‘eu’, também serviriam como exemplo deste erro lógico.

Em Ciência e Comportamento Humano, Skinner (1953) considera o uso de termos como personalidade ou eu, inadequado para uma análise do comportamento e afirma que

O eu é mais comumente usado como uma causa hipotética de ação... sua função é atribuída a um agente originador dentro do organismo. Se não podemos mostrar o que é responsável pelo comportamento do homem dizemos que ele mesmo é responsável pelo comportamento... O organismo se comporta, enquanto o eu inicia ou dirige o comportamento. Além disso, mais do que um eu é necessário para explicar o
comportamento de um organismo... A personalidade, como o eu, é considerada responsável pelas características do comportamento. (p.271).

Segundo Skinner (1953), o melhor meio de nos desembaraçarmos de qualquer explicação fictícia é examinarmos os fatos sob os quais elas se baseiam. Neste sentido, o autor apresenta a seguinte análise,

parece que o eu é simplesmente um artifício para representar um sistema de respostas funcionalmente unificado... Um eu pode se referir a um modo de ação comum... Em uma mesma pele encontramos o homem de ação e o sonhador, o solitário e o de espírito social... Por outro lado uma personalidade pode se restringir a um tipo particular de ocasião – quando um sistema de respostas se organiza ao redor de um dado estímulo
discriminativo. Tipos de comportamento que são eficazes ao conseguir reforço em uma ocasião A, são mantidos juntos e distintos daqueles eficazes na ocasião B. Então a personalidade de alguém no seio dafamília pode ser bem diferente da personalidade na presença de amigos íntimos. (p. 273).

O autor (Skinner, 1953) aponta ainda que, sob diferentes circunstâncias, diferentes “personalidades” podem se manifestar, chamando atenção, mais uma vez, para a importância de buscarem-se as verdadeiras causas do comportamento atribuído à pessoa de “personalidade” agressiva ou tímida, recusando-se explicações fictícias em termos de personalidade como agente causador. 

Sob circunstâncias apropriadas a alma tímida pode dar lugar ao homem agressivo. O herói pode lutar para esconder o covarde que habita a mesma pele... O crente piedoso dos domingos pode tornar-se um homem de negócios agressivo e inescrupuloso nas segundas-feiras. (p. 273).

De fato, muitos são os exemplos que ilustram os diversos padrões que a personalidade de alguém pode apresentar. Padrões variados de ação podem ocorrer antes e depois de uma refeição, na presença do chefe ou do subordinado, diante de alguém mais forte ou mais fraco, sob perspectivas de reforçadores ou não, sob efeito ou não de drogas, na intimidade afetiva ou numa reunião importante do trabalho, junto dos amigos ou de pessoas desconhecidas, estando na condição de professor ou na condição de aluno, conversando com alguém que saiba mais ou alguém que saiba menos, etc. O que ocorre é que as pessoas possuem sistemas de respostas apropriados a diferentes conjuntos de circunstâncias, em função das suas histórias particulares de aprendizagem. Uma situação conflitante surge quando o indivíduo se depara com dois desses conjuntos
ao mesmo tempo como, por exemplo, quando se encontra na presença do chefe e do subordinado ao mesmo tempo, quando recebe a visita da namorada no trabalho, ou na presença simultânea de alunos e professores. 

As variáveis ambientais e históricas que controlam estes sistemas de respostas funcionalmente unificados são freqüentemente desconhecidas das pessoas. Conseqüentemente, estas voltam-se para o interior do organismo (personalidade, eu, self, etc) em busca de explicações para a origem de suas ações. Estando as explicações no interior do organismo, é mais provável que se espere uma constância na maneira de se comportar, refletindo uma personalidade coerente ou verdadeira, mesmo que a situação em que o indivíduo esteja se comportando exija uma atitude diferente da usual. Cobranças surgem para que as pessoas sejam estáveis quanto ao modo de agir e para que expressem o seu ‘eu’ de forma coerente. No dia a dia, acha-se estranho a “boazinha e doce” senhora tendo uma reação agressiva mesmo diante de uma justificável situação frustrante. O educado e fino cavalheiro sente-se constrangido ao agir “grosseiramente” em público mesmo que o contexto assim requeira. O corajoso fica envergonhado por esquivar-se de uma situação de perigo com provável conseqüência desastrosa. O submisso é criticado quando tenta impor seus interesses. A garota tímida deixa todos espantados quando age de maneira mais ousada, e assim por diante.

Page e Neuringer (1985) salientaram o fato de que muitas instituições, como o próprio lar e a escola, punem a variabilidade comportamental. Além da variabilidade comportamental ser punida, pode haver a possibilidade das pessoas serem reforçadas inúmeras vezes por agirem apenas de um determinado modo. Um outro modo de ocorrer  restrição comportamental se dá quando o comportamento de seguir instruções ou conselhos foi freqüentemente reforçado, caracterizando um forte controle por regras (Baum, 1999). Neste caso, o reforço pode ter sido produzido diretamente pela contingência, como quando seguir um conselho “dá certo” ou apenas pelo fato de ter seguido o conselho ou instrução, que é exemplificado quando um pai parabeniza o filho  por ter feito o que lhe disse para fazer (Nico, 1999). Uma pessoa fortemente reforçadapor seguir instruções pode apresentar um sistema de respostas rígido, com pouca variabilidade comportamental. Embora esta esterotipia seja útil em algumas situações, em outras, como quando as contingências requerem outros comportamentos, pode ser totalmente prejudicial. Isto faz com que a pessoa entre em conflito caso se engaje em atitudes incompatíveis com a habitual (que compõe a sua imagem). Quando isso ocorre, sente-se culpada ou constrangida.

A Análise do Comportamento entende o termo personalidade como um repertório comportamental adquirido (Matos,1997). Comportamento é interação organismo-ambiente (Todorov, 1989) e tem uma função biológica adaptativa. Esta interação é dinâmica, favorecendo a uma plasticidade do comportamento. Isto quer dizer que o mesmo pode mudar a partir de mudanças nesta relação. Portanto, as variações comportamentais no modo de agir das pessoas são necessárias, podendo ser freqüentes.

Darwin (1859, em Desmond & Moore, 1995) foi um dos primeiros a salientar a importância da variação, sendo esta necessária dentro do processo evolutivo. A diversidade e variação orgânicas nos seres de uma espécie são aspectos marcantes para a sua sobrevivência e que possibilitarão, a longo prazo, a transformação em outra espécie. Darwin afirmou que a seleção natural é um processo em que há preservação de variações favoráveis e rejeição de variações prejudiciais. Segundo Micheletto (1997), Skinner incorpora influências de Darwin, e estende a amplas dimensões o princípio da seleção pelas conseqüências ao afirmar (Skinner, 1966,1981) que a filogênese, a ontogênese e as práticas culturais do comportamento se fundamentam em processos de variação e seleção, resultando na adaptação de um organismo ou espécie ao meio
ambiental. No plano ontogenético, a seleção é feita pelas conseqüências produzidas pelos próprios comportamentos. Conseqüências reforçadoras fortalecem umcomportamento ou repertório de ações ao passo que a ausência dessas conseqüências o enfraquecem.

Muitos são os exemplos da importância da variabilidade na adaptação do indivíduo ao meio. Quando há ausência ou pouca freqüência de reforçadores, a variação do comportamento aumenta a probabilidade do indivíduo melhorar esta situação, resultando em novos modos de se obter reforço ou mudar o ambiente. Na aprendizagem operante, a variabilidade de respostas vai permitir que ocorra a modelagem do comportamento e a seleção do mesmo por contingências de reforçamento. Um bom exemplo se refere à aquisição do comportamento verbal, que é modelado a partir de um substrato natural de comportamentos altamente variados, que são os balbucios da criança (Skinner, 1957). Nele percebe-se claramente a interação de fatores filo e ontogenéticos. Do mesmo modo, falar de resolução de problemas e criatividade só é possível com base na variabilidade comportamental.

O estudo empírico das condições em que ocorre variabilidade também tem recebido interesse dos analistas do comportamento. Tais estudos têm explicado a variabilidade comportamental de duas formas: como um produto indireto (Margulies,1961; Eckerman & Vreeland, 1973; Vogel e Annau, 1973; Boren, Moerschbaecher & Whyte, 1978; Schwartz, 1980,1982) ou direto (Blough, 1966; Pryor, Haag & O’Reilly,
1969; Goetz & Baer, 1973; Bryant & Church, 1974; Page & Neuringer, 1985; Machado, 1989; Ribeiro et al, 1993; Marçal, 1997) das contingências de reforçamento. O primeiro caso pode ser exemplificado quando contingências de reforço intermitente ou ausência de reforço estão em vigor, fazendo com que as pessoas mudem a sua forma de agir quando a maneira tradicional não está dando certo (deixa de produzir reforços). O segundo caso é exemplificado por situações em que a variação é diretamente reforçada, como é o caso do indivíduo considerado criativo, que provavelmente foi exposto a umahistória de reforçamento contingente à variação do comportamento. Em muitos esportes, o jogador de alto nível obtém êxito sobre os adversários quando apresenta estratégias variadas de ação. O compositor trabalha sempre em cima de algo novo, o mesmo em relação ao pintor ou escultor. O mágico de sucesso sempre busca a criação de números novos. A publicidade, literatura, laboratório, etc, são contextos que também reforçam a variabilidade comportamental.

Concluindo, vê-se que a Análise do Comportamento interpreta o ser humano a partir das diversas relações existentes entre o organismo e o seu ambiente, levando em consideração a história da espécie, a história do indivíduo e a história da cultura na qual está inserido (Skinner, 1981). A partir da análise destas relações pode-se conhecer as variáveis das quais o comportamento humano é função e, conseqüentemente, entender
mais sobre a sua natureza humana. O que é chamado de personalidade pode se referir a um padrão de comportamentos adquiridos e mantidos por contingências, não excluindo as diversas variações que existem no modo de agir das pessoas no decorrer de suas vidas. O seu conceito, não deveria passar de rótulo de classes comportamentais para a própria causa dos mesmos. A variabilidade comportamental, por sua vez, pode ser entendida como mais uma característica humana necessária para uma boa adaptação ao meio em que vive. Rejeitar esta variação é rejeitar a própria natureza humana

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Retirado do Site: IBAC
Postado por Ítalo Sobrinho

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